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Masculinidade tóxica

Em novembro, o cantor Tiago Iorc retornou de um período sabático e de hiato, com essa composição que é um convite à reflexão sobre o tema Masculinidade:

Eu tava numa de ficar sumido
Dinheiro, fama, tudo resolvido
Fingi que não, mas, na verdade, eu ligo
Eu me achava mó legal

Queria ser uma unanimidade
Eu quis provar a minha virilidade
Eu duvidei da minha validade
Na insanidade virtual

Eu cuido pra não ser muito sensível
Homem não chora, homem isso e aquilo
Aprendi a ser indestrutível
Eu não sou rea
l

Conversando com os meus amigos
Eu entendi que não é só comigo
Calar fragilidade é castigo
Eu sou real

Transcorrendo por um diálogo interno sobre sua existência diante as diversas fases vividas, Tiago apresenta posicionamentos sobre quando ainda não reconhecia suas atitudes tóxicas e vai discorrendo até a tomada de consciência do quão nociva pode ser a masculinidade e  sobre a importância do processo de cuidado da saúde mental também para o universo masculino.

E o que é masculinidade?

Sartre (1987), ao refletir sobre a liberdade a partir do pensamento existencialista, traz que a existência precede a essência. Ele critica a ideia de predeterminação inata para a essência humana e, nesse sentido, afirma que são as escolhas subjetivas e particulares que podem construir o indivíduo. Nessa mesma perspectiva, Simone de Beauvoir, diz que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (2016, p.11) e que a ideia de gênero é construída pelas relações sociais, culturais e pela moral.

Então, masculinidade é o conjunto de comportamentos, estabelecido socialmente, que possibilita o reconhecimento de um indivíduo como sendo alguém do sexo masculino. Assim como feminidade é o conjunto de comportamentos e atitudes ditas como características para identificação de um indivíduo como sendo feminino.

Masculinidade frágil, coisa de menino
Eu fui profano e sexo é divino
Da minha intimidade, fui um assassino
Que merda!

Quando criança, era chamado de bicha
Como se fosse um xingamento
Que coisa mais esquisita
Aprendi que era errado ser sensível
Quanta inocência

Eu tive medo do meu feminino
Eu me tornei um homem reprimido
Meio sem alma, meio adormecido
Um ato fálico, autodestrutivo

No auge e me sentindo deprimido
Me vi traindo por ter me traído
Eu fui covarde, eu fui abusivo
Pensei ser forte, mas eu só fugi

E caí na pornografia
Essa porra só vicia
Te suga a alma, te esvazia
E quando vê passou o dia

E você pensa que devia
Ter outro corpo, outra pica
A ansiedade vem e fica
Caralho, isso não é vida!

Mas, afinal, o que é masculinidade tóxica?

As construções sociais do que é ser feminimo e o que é ser masculino passa por uma linha tênue à toxicidade quando observamos que há uma divisão entre bom e mau, superior e inferior, melhor ou pior nessas distinções de características. E aí é possível reconhecer o que denominamos por masculinidade tóxica.

A masculinidade tóxica é o conjunto de mitos transmitidos às crianças e reafirmadas no decorrer de suas existências com característica excludente para quem não age de acordo com sua padronização. Esse conjunto se mostra no perfil de masculinidade pautado por agressividade, violência, opressão e dominação. E, nesse sentido, as atitudes tidas como femininas passam a ser repudiadas, pois são associadas à fraqueza e inferioridade.

Porém a masculinidade tóxica não é exclusividade dos indivíduos do sexo masculino. Todos nós reproduzimos a toxicidade do masculino, é um comportamento que está enraizado em nossa cultura o reconhecimento do homem como superior, melhor. E, em algumas culturas e lugares do mundo, as mulheres inclusive não são nem vistas e consideradas seres humanos completos, tamanha sua inferioridade.

Meu pai foi minha referência de homem forte
Trabalhador, generoso, decidido
Mas ele sempre teve dificuldade de falar
O pai do meu pai também não soube se expressar

Por esses homens é preciso chorar
E perdoar
Essa dor guardada
Até agora, enquanto escrevo
Me assombra se o que eu digo é o que eu devo

Um eco de medo
O que será que vão dizer?
O que será que vão pensar?

A rejeição ensina cedo
Seja bem bonzinho ou então vão te cancelar
Que complexo é esse?
Mamãe, é você?

Me iludi nessa imagem, tentei me esconder
Eu só posso ser esse Tiago
Cheio de virtude, cheio de estrago
Que afago crescer, aceitar

Quais são os mitos associados à cultura da masculinidade tóxica?

Mesmo sendo uma assunto que ganha cada vez mais espaço nas discussões atuais, ainda é difícil conseguirmos identificar as situações em que as atitudes tóxicas vinculadas à masculinidade se manifestam. Algumas dessas atitudes estão tão profundamente arraigadas em nossa cultura, que já não se tornam conscientes em nosso dia a dia.

Engole o choro, homem não chora, não seja mulherzinha

A sensibilidade é uma característica associada ao feminino e traz, culturalmente, uma conotação de fraqueza e sensibilidade. E nesse sentido os homens são polidos de expressar suas emoções e demonstrar seus sentimentos. Ser comparado à uma mulher, denota uma atribuição de inferioridade dentro desse contexto danoso.

Esse tóxico dogma de não poder sentir ou expressar emoções pode ser associado ao elevado índice de suicídio entre homens. Emoções, quando não vivenciadas, se tornam catalisadores de ações que podem ser desastrosas.

Brincadeira de menino, coisa de homem

Futebol, sexo, carro e cerveja são atividades e objetos associados ao universo masculino. Outros interesses não tidos como pertencentes a esse universo, colocam sua sexualidade, e até mesmo sua virilidade, em xeque.

Homem não pode negar fogo, homem tem que pegar todas

A sexualidade é duramente questionada, e também criticada, quando o indivíduo não faz algo que é considerado naturalmente masculino. Questões como fidelidade, monogamia ou a abdicação ao envolvimento amoroso é considerado errado. Pressupõe-se, pelo viés da masculinidade tóxica, que o homem deve estar sempre aberto a se envolver em uma relação, sempre pronto para o sexo. Toda essa pressão, faz com que a pessoa considerem as relações sexuais como troféus a serem colecionados. Esse incentivo exacerbado à sexualidade é também uma das causas dos quadros de impotência sexual, ansiedade e disfunções eréteis. Além disso, essa reafirmação de masculinidade acima da feminilidade pode dar origem a relacionamentos abusivos.

Homem não leva desaforo pra casa

Os homens são mais incentivados a reagir pela agressividade do que estimulados a desenvolverem a inteligência emocional para aprenderem a lidar com as adversidades. Isso faz com que não consigam canalizar de maneira positiva suas emoções e os comportamentos violentos tomam lugar das atitudes emocionalmente inteligentes. Os padrões e atitudes violentas podem ser no aspecto físico ou verbal.

Ai, ai
Esse homem macho, machucado
Esse homem violento, homem violado
Homem sem amor, homem mal amado

Precisamos nos responsabilizar, meus amigos
A gente cria um mundo extremo e opressivo
Diz aí, se não estamos todos loucos
Por um abraço
Que cansaço!

Cuidado com o excesso de orgulho
Cuidado com o complexo de superioridade, mas
Cuidado com desculpa pra tudo
Cuidado com viver na eterna infantilidade

Cuidado com padrões radicais
Cuidado com absurdos normais
Cuidado com olhar só pro céu
E fechar o olho pro inferno que a gente mesmo é capaz

Problemas diretamente resultantes da masculinidade tóxica:

A masculinidade tóxica está diretamente associada a hábitos nada saudáveis. Há a premissa de que o autocuidado é coisa de mulher e que os homens precisam ser valentes – como se valentia fosse sinônimo de saúde. Assim, os homens são culturalmente desencorajados a buscar orientação médica, mesmo em quadro de adoecimento.

Um estudo realizado em 2007, nos Estados Unidos, identificou que quanto maior a conformação do homem com os dogmas da masculinidade tóxica, maiores as probabilidades de seu envolvimento em situações de risco, como a utilização de drogas lícitas – álcool e tabaco – e a alimentação nada saudável.

A masculinidade tóxica também é extremamente prejudicial à saúde mental. A perceverança na prática de seus padrões ou mesmo a sucumbência à pressão cultural diariamente estabelecida para “ser homem”, pode ocasionar quadros de depressão, ansiedade, estresse e até mesmo o suicídio.

Cuida, meu irmão
Do teu emocional
Cuida do que é real

Minha alma é profunda e se afoga no raso

Eu fico zonzo, fico triste
Fico pouco, fico escroto
Eu sigo à risca o que é ser homem
Isso não existe, a vida insiste
O tempo todo que eu repense

O que é ser homem?
O que é ser homem?

Importância do cuidado com a saúde mental e as 3 fases do processo de cuidado

Características associadas ao feminino como sensibilidade, empatia, cuidado e acolhimento podem ser encontradas e cultivadas em homens. Emoção, sentimento, vulnerabilidade e saúde emocional, não pertencem ao masculino ou ao feminino… são características e necessidades do ser humano, então, é passível a qualquer um sentir. Assumir isso pode ser o caminho para se tornar mais feliz consigo mesmo. 

O processo de psicoterapia pode te auxiliar a lidar com a masculinidade tóxica, através dessas etapas:

  1. Mudar a relação consigo mesmo: é importante, como primeiro passo, o indivíduo voltar-se para o autocuidado e para o autoconhecimento. Entender e reconhecer quais atitudes têm arraigadas e tem características tóxicas, é essencial para o processo de mudança de mindset. Se acolher e se permitir abrir mão desse fardo de ter que agir de determinada forma pode ser libertador.
  1. Mudar a relação com as pessoas que o cercam: o segundo passo é reduzir, até conseguir extinguir, a reprodução de comportamentos que reconheceu como tóxicos. Fortalecer as características individuais dos amigos, evitar brincadeiras tóxicas ou desvalorização das preferências pessoais e vulnerabilidades das pessoas, possibilitará relações mais saudáveis. 

O que eu não quero pra mim, também não devo desejar ao meu próximo/a.

  1. Mudar a relação com todo o ambiente: quanto mais as pessoas seguem os ideais da masculinidade tóxica, menores as chances de mudanças sociais e culturais. Essa etapa é a fase em que o indivíduo passa a ter e oferecer ferramentas para que as pessoas reconheçam que o que elas têm por “homem de verdade” pode ser danoso às suas próprias vidas e à todos que os cercam. 

Há tantos e tantos
E tantos e tantos e tantos
Possíveis homens

(Homem real e não ideal)
Ser homem por querer se aprender, todo dia
Dominar a si mesmo
Apesar de qualquer fobia: Respeito

Tem que ter peito
Tem que ter culhão pra amar direito
Vou dizer que não?
Esperando sentado por salvação?

Conexão, empatia, verdade
Divino propósito: Responsabilidade
Deitar a cabeça no travesseiro e sentir paz
Por ter vivido um dia honesto

Ah!
Ser homem exige muito mais do que coragem
Muito mais do que masculinidade
Ser homem exige escolha, meu irmão

E aí?

O mais importante é o autocuidado e a atenção aos comportamentos que são reproduzidos e dogmas que são perpetuados. Tiago incentiva os homens a cuidarem da saúde mental e estamos aqui para dar o mesmo incentivo.

Cuida, meu irmão / Do teu emocional / Cuida do que é real !

Gosta do tema e quer ouvir o que nossas psicólogas falaram sobre ele em nossa live. Então, acesse aqui e assista.

Psicóloga Adriana Lopes – CRP 04/54908 – @psiadriana 

BEAUVOIR. Simone. O Segundo Sexo. Vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 

Iorc, Tiago; Asato, Mateus; Tróia, Tomás; Ferreira, Lux. “Masculinidade.” 2021

MAHALIK, James R. BURNS, Shaun M. SYZDEK, Matthew. Masculinity and perceived normative health behaviors as predictors of men’s health behaviors. 2007. Disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0277953607000846?via%3Dihub 

SARTRE. Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. A imaginação: Questão de método. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução de Rita Cor-reira Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior. 3. Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

Envolva-se!

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